quinta-feira, 29 de junho de 2023

EU




O Eu se acha o âmago do universo.
Fala alto, ri escrachado, gesticula, gosta de chamar a atenção. O centro das atenções.
Gosta de ouvir música alta em todo lugar.
Não é alta, é muito alta. e nem se importa com nada.
Geralmente é aquela música bem brega. Aquele jabá tocado em looping.

Aquele domingo ensolarado no parque ou na praça, quando queremos nos refugiar para apenas ouvir o som dos pássaros, do vento balançando as árvores. O barulho da criança correndo e rindo. Do pedalar da bicicleta. Dos sussurros dos casais e das famílias.
Apreciar o silêncio.
Na praia não quermos distração, apenas ouvir o rebentar das ondas. Olhar o horizonte, onde o céu encontra o mar.
Deitado relaxado observando o azul deste céu.
Mas eis que surge o nascisista com sua caixa de som JBL para tirar sua paz e sossego.

Este desconforto também é sentido nos transportes públicos, tem a briga pela audiência.
Balbúrdia do trânsito e a azáfama lá dentro.
Gritaria, falatório e o Eu querendo chamar a tua atenção. Te observa querendo te envolver na conversa.
Ônibus, metrô, trem, inclusive no Uber é esta confusão. Música, novela, conversa no telefone, áudios do aplicativo.
No táxi é sem comentário, aí é um exagero de desrespeito. Futebol.
A narração é pura gritaria.
Nem se importam qual é o seu time, se é que você tem um time, se é que você gosta de futebol.

Barulho, barulho e barulho em todos os lugares.
Quando você mora num condomínio, seu refúgio para o seu conforto, sua segurança e silêncio.
Ah, aquele vizinho festeiro.  De olhar arrogante, com a pálpebra caída. Semblante soberbo.
O pobre palhaço se considerando alegre e divertido dono da verdade.
Considera que sua música é a número um nos trend top mundial.
Que seu gosto musical é o favorito de todos. A preferência universal.
Simplesmente porque é o seu gosto musical.

Barulho, barulho, e mais barulho, de todos os tipos.
Por falar em condomínio, não posso deixar de mencionar aquela família que mora no andar de cima.
Vivem como se morassem numa casa térrea cercado pelo verde.
O solitário numa ilha deserta sem ninguém para incomodar.
O caminhar do salto alto no porcelanato. O som alto das músicas, o brinquedo das crianças sendo jogados e arrastados. Arrastando também a cadeira da sala de jantar e da cozinha.
Gritaria, risos, falatório. Um vasto repertório.
Não tem dia nem hora. desconhecem a sua rotina e horário de trabalho. Nem te conhece, te ignora.

E quando o narcisista é o dono do bar (boteco, adega, lounge - cada dia um nome novo)?
É festa todos os dias, sem hora para começar e para acabar.
Alguns restaurantes estão adotando a prática da música ao vivo. É o fim.
Aí você me diz: "restaurante com música ao vivo sempre teve". Sim, mas não numa altura que seja impossível conversar, poder desfrutar e saborear uma refeição em família.
Alguns restaurantes se consideram balada.
Nestes casos de estabelecimentos comerciais, não adianta fazer boletim de ocorrência, não adianta ligar para a polícia, muito menos abaixo assinado com os vizinhos. Esquece, ninguém age, ninguém se importa, o que importa é o valor da propina.
Ir falar com o proprietário, nem pensar, é perigoso. Nos dias de hoje, não sabemos com quem estamos lidando.
Nestes estabelecimentos com este som ensurdecedor: se está lotado, ninguém consegue conversar. Se está totalmente vazio, som alto para quem? Para os vizinhos ouvirem e não poderem assistir a TV, o bebê não dormir, a gente não dormir.
O som avança a madrugada.

Se todo este dilema fosse apenas o som alto (que já seria muito).
Mas ainda tem outros. Por exemplo, o escapamento cerrado da moto do entregador do aplicativo que acelera desnecessariamente nem à sua porta.
O escapamento furado do carro velho com o motor batendo biela e soltando muita fumaça.
São 24 horas dos sete dias da semana.

Nos dias da semana ainda tem que aguentar o megafone do vendedor ambulante.
A pamonha, a água sanitária, a reciclagem de óleo, o entregador de gás.
Promoção do ovo, a pizza de 10, e tantos outros produtos e afins.

O locutor no microfone dos supermercados, ou na frente das lojas, anunciando a promoção, acha que está numa feira. Igualzinho ao ultrapassado formato do programa de auditório.
Locução esta que sempre é acompanhada de uma trilha sonora. Justamente aquela: a música brega que virou modinha no carnaval passado.

A saúde mental do brasileiro não é normal.
Falam muito da poluição do ar e das águas, mas esquecem-se da poluição sonora.
Tem ainda aqueles que são contra o governo regulamentar a sociedade para educar e evitar o barulho.
Mas não da para esperar um comportamento respeitoso do narcisista.

O Eu, o narcisista, ainda é um ufanista.
Ele é o melhor, que tudo que possui e faz é o melhor.
Por isso, não vai se importar com a multa, pagando ou não pagando.
Para ele a multa não é uma forma de educar, uma maneira de doutrina-lo. Uma medida restritiva. Considera a multa um mecanismo do governo tirar dinheiro.
Por se considerar o melhor, não se acha na condição de ter correção.
E, se você não acha-lo o melhor, o problema é seu.

Quantos motoristas respeitam a faixa de pedestres, e quantos já foram multados?
Quem não respeita e não quer respeitar não vai enxergar a multa de uma maneira educacional, porque não se importa com ninguém.
Salve-se quem puder.
Haja paciência!



Wagner Pires
in, Silêncio, O Culto

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