sábado, 30 de maio de 2020

FERNÃO FERRO NUM CONTO

imagem: Quinta a Valenciana, Fernão Ferro, Setúbal, Portugal


                    Era nove e um quarto, a dona Gina me disse: "sr. Pires, pegue o lombardo que está no alguidar, no frigorífico, deite no
tabuleiro e ponha-o ao lume ao lado do tacho". Este foi meu dia: entre
bifanas e bitoques, costeletas e entrecosto (todos comprados no talho),
pregos no pão e algumas gambas salteadas que foram servidos por
todo o dia.

          Fim de mais um longo dia de trabalho, duro e muito atarefado, abro meu cacifo, troco minha roupa. Enfim vou para a casa, logo abaixo, numa quinta.

          Vou a descer pelo húmido caminho. O silêncio é quebrado com o som dos meus pés a pisarem nas pinhas e, ainda oiço cães rafeiros a ladrar à minha direção. Sou obrigado a segurar pedras à mão.

          Sinto o cheiro da lenha a queimar nas quintas. O fumo que sai da lareira se mistura com a forte névoa que desce sobre o abundante arbusto, mal posso enxergar o alcatrão. Tanto frio, sensação abaixo de zero que faz até o mocho se esconder.

          Os passos são largos, cansados, extremamente apressados. Ansioso para chegar à casa, entrar na casa de banho, encher a banheira e uma quentinha água para poder relaxar. Ao final, sentar-me-ia enrolado no edredão à frente do ecrã, acender o candeeiro para poder degustar uma chávena de chá que vem me afagar.

          Por falar em casa de banho, sempre digo para o meu miúdo: "quando usar a sanita, apertar o autoclismo e lavar bem as mãos".

          No percurso, que não é tão longo, ainda tive tempo de planear minha folga: acordar, tomarmos nosso pequeno almoço e partir para a paragem, pegar o autocarro e, assim que passarmos a portagem e avistarmos a ponte, passear com meu puto em Lisboa. Compras no centro comercial ao lado do estádio da Luz, talvez comprar umas camisolas, umas peugas e depois assistir uma animação no grande ecrã, com vozes de actores e actrizes bem famosos. Quem sabe um tempinho para se divertir no carrinho de choque, é muito fixe. Depois saborear uma sandes acompanhada por B!, um sumo fresco de maracujá e ginseng. Encerrando com um gelado da Olá®. E, com certeza, além do gelado, ele ainda vai querer muitos rebuçados e algumas pastilhas elásticas - volta seria no confortável comboio.

          Aliás, meu puto já deve estar a dormir, estava constipado. Tê-lo-ia a ficar a me esperar, mas também teve um longo dia na dona Maria José, sua ama: muita brincadeira no baloiço e no escorrega. Se alimentou e descansou (espero que não tenha sido iscas de porco, afinal ele não aprecia) até voltar a brincar de pique-esconde e a desenhar com o lápis de carvão com o Ricardo, Yuri, o mais pequeno, e a Catarina, uma rapariga muito gira.

          Triste! Hoje sigo perdido algures com estas e tantas lembranças de outrora. Com noites que são lamentos de um coração que sonha em voltar e, até lá, somente chorar.


"Mas os que esperam no Senhor renovarão as forças, subirão com asas como águias; correrão, e não se cansarão; caminharão, e não se fatigarão". (Isaías 40:31)



por Wagner Pires
in, Silêncio, O Culto, May 29th, 2020.

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