sexta-feira, 18 de outubro de 2024

O MENINO DO QUARTO VAZIO - UM CONTO



- Luisinho, vai ao mercadinho comprar umas coisas para a mãe!

- Ah, mãe, tem que ser eu? Sempre eu?

Lá vem um caminhão, eu vou correr mais rápido do que ele, eu sou muito rápido. Vamos ver quem chega à esquina primeiro.
Ufa, hoje eu quase ganhei.
Por falar em ganhar, vou furar naquele jogo para ver se desta vez cai uma bolinha colorida, eu nunca ganhei um prêmio.

Não queria ir à escola hoje, não gosto de lá, os meninos ficam rindo de mim só porque sou pequenininho e tímido.
A professora nem liga, aliás, outro dia até ela riu de mim. Só porque eu fiquei nervoso por estar envergonhado.
E ainda chamou minha mãe na diretoria, disse que eu precisava de um tratamento médico.
Eu não ligo, fico quietinho, assim eu vou aprendendo, gosto muito de fazer contas, escrever histórias e conhecer histórias do mundo, também. Gosto de conhecer o mundo pelo atlas, ver jornais e revistas. E gosto de desenhar.

Está chegando o mês de junho, será que eu vou poder dançar quadrilha na festa junina com a Mara? Ela é muito linda.
No ano passado eu queria ter ficado com a Kátia, mas ela nem quis. Vou falar com o Cabeção, ele é meu amigo.

Lá vem aquele meu tio chato, só compra doces para meu irmão e meu primo. Ele tem um cheiro ruim, um cheiro de pinga. Igual ao bafo do meu pai quando briga com a minha mãe, cheiro de cerveja. Nestes dias ele quebra tudo em casa.
Outro dia eu o ajudei, comecei a chorar e gritar pela minha mãe quando ele estava com a boca no fogão, já estava quase desmaiando, pálido.
Minha mãe deu uma dura nele e contou tudo para a minha avó.

No final de semana eu, meu irmão e meus primos vamos jogar bola na rua de novo, não vejo a hora de podermos disputar com os meninos da outra rua. Nosso time é muito bom, eu sou o mais velho, sou o capitão, o artilheiro.
Mas eles ficam bravos comigo porque eu gosto de driblar todos e fazer muita graça com a bola.
Meu outro amigo, o Sérgio, é nosso goleiro. Claro, é o maior de todos. Ninguém faz gol nele.
No campeonato da escola, eu fui o último a ser escolhido, só por causa do meu porte: baixinho, magricela, e no jogo se surpreenderam, ninguém passava por mim, e ainda fiz o gol da vitória. Ganhamos do time que era considerado o melhor da sala. Passamos para a próxima fase.

Já não somos mais as crianças do primário, estamos em nova escola. O aluno mais popular é o Goiaba, e como eu sou o menor de todos, ele diz que eu sou o seu filho, o Goiabinha.
Como ele conhece muitas meninas, elas também são minhas amigas. Na aula de educação física a gente estava correndo pela quadra, uma delas falou que eu sou uma gracinha.

Com os amigos da rua, continuamos nas partidas de futebol, não gostamos de ficar empinando pipa.
Gostamos de jogar futebol de botão.
Eu organizo um campeonato só meu. Vou para o quarto de bagunça, ligo a vitrola Delta, azul calcinha, na rário Excelcior AM e fico ouvindo músicas de discoteca enquanto jogo as partidas de botão.
Quando canso de jogar botão eu vou desenhar personagens de quadrinhos, tem vários desenhos, encheu uma parede inteira de ponta a ponta, de cima a baixo. Minha mãe fica orgulhosa com meu talento para desenhar. Minha irmã pega meus desenhos para colorir.
Eu não gosto, prefiro que fique apenas nos rabiscos, em preto e brando.
Meu mundo em preto e branco.

Futebol, desenhar, ouvir música, as coisas que eu mais gosto.
Apesar que tem uma outra paixão, automobilismo, todos os domingos pela manhã fico esperando começar a Fórmula 1. Quero crescer e comprar o meu carro, conheço todas as marcas e modelos. Quando junto umas moedas do troco das compras que eu faço para a minha mãe, eu compro a revista Quatro Rodas só para ver os carros.

Este mês terá o Salão do Automóvel, vou sair sozinho pela primeira vez com um amigo, o Alexandre, mora lá no bairro ao lado do meu.
Vamos a tarde e só voltaremos na hora de fechar.

Gostei da ideia de sair a noite com amigos, passear, conhecer lugares e pessoas, quem sabe eu arrumo uma namorada.
Vou com minha irmã na discoteca, como eu amo música, tenho certeza que vou me divertir.

Uma pena, não me diverti. Esta minha timidez me bloqueia, não consegui dançar, nem conhecer ninguém, fiquei como um bobão sentado no sofá só ouvindo as músicas.
Bom, pelo menos isto eu pude curtir: todas as músicas. Algumas que eu nunca tinha escutado na rádio.
Achei sensacional o jogo de luzes sincronizado com as músicas.
Uma que me marcou foi Prince - I Wanna Be Your Lover, que louco quando chega no drop e fica apenas o instrumental e a iluminação sob pista e a estrela do teto no mesmo ritmo.
Isto me fez viajar, sonhar, querer ser um DJ.

A multidão lá em baixo, na pista de dança, quase 2 mil pessoas olhando para mim na cabine de som comandando a festa, fazendo virada nos tocas discos, brincando com o microfone, agitando a galera, foi a cura para minha timidez.
Conhecer garotas, ser conhecido, ter amigos, ser admirado, respeitado, era tudo o que eu sempre quis.

Ser DJ numa das maiores casas noturnas do Brasil, poder produzir um programa semanal na segunda maior emissora em audiência de rádio era a realização do sonho.
Mas a maldita timidez interferiria mais uma vez, impedindo de poder crescer no meio musical, um bom relacionamento profissional, ter contatos, ser audacioso, poder arriscar.
Mesmo sendo considerado um dos melhores, tanto nas mixagens ao vivo, as viradas, quanto na produção em estúdio: os bootlegs, os mashups; cortes feitos em fitas de rolo. Usava a criatividade, a imaginação.  Aquela mesma de criança quando rabiscava os personagens tirados dos quadrinhos e dos álbuns de figurinhas.

Sonhos que faziam transportar-me em alma para outros continentes, levaram-me a atravessar o oceano em corpo, certo de que seria um caminho sem volta. E realmente foi, pelo menos em emoção e sentimento, lembrancas e saudade.
Uma ida que não deveria ter tido a vinda. Mas enfim, erros cometidos pela emoção do calor do momento.
Não foram erros de rabiscos em grafite que puderam ser apagados com uma simples borracha. Ou, talvez, erros na montagem nos acordes, cujo corte com uma gilete e uma fita adesiva  resolveria tudo.
Insegurança, medo, temor: precepitação.
Receio e preocupação.

Tempos em que mais uma vez pude praticar a criatividade. Desta vez com os temperos, o calor da grelha e do fogão. A calda, o ganache, a fruta sendo transformada no coulis para adoçar o paladar.
Conquistando a admiracão e respeito daqueles que provaram. Provaram o doce, o salgado e o caráter.
Minha personalidade temperada com exigência de perfeição, salgada com críticas e doce de coração. Tudo equilibrado na temperatura adequada pelo momento.

Ah, quem dera eu ter escutado meu lado mais ousado com aquela coragem de viver independente de tudo e todos, e não ter me acovardado na timidez e pequenez de misericórdia.

Paredes que se ergueram.
Portas que se fecharam pelo lado de dentro.
Lugares abafados, sem janelas.
Escuridão e silêncio.
Lá dentro sem forças e capacidade para abrir.
Terror, tremor e temor.

Instabilidade emocional na mesma e velha capacidade intelectual criativa.
Sonhar e planejar.
Querer conquistar e transformar este mundo doente.
Egoísmo e egocentrismo, traições e covardia.
Banalizaram o normal, sem moral.
Desconfiança.

Transformando-me no senhor das minhas impacientes opiniões.
Inegociável e crítico.
Assumi o silêncio indiferente na minha ausência.
O eu dentro de mim mesmo, minhas ideias e meus ideais.
Não aceitando a injustiça pessoal e social.
Porém, sem forças e capacidade para mudar o que está ao redor,
Fico ao som de melodias e busco em minha criativa memória,
Lembranças para escrever contos e histórias
Trancado num quarto vazio.


por Wagner Pires,
em, Roteiros de Uma Rotina.

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